O medo das consequências, por Inês Pedrosa

Partilho com vocês a crónica de Inês Pedrosa, desta semana, na revista Única, do jornal Expresso. A jornalista resolveu escrever sobre uma tema quente da semana que passou, o caso da aluna da Escola Carolina Michaelis, no Porto. Gostei particularmente da forma aberta como colocou a questão e acho importante que se tenha frontalidade nestes casos e deixar os ditos "paninhos quentes" para outras alturas.


A crónica intitula-se: "O medo das consequências". Aqui fica.


"A história da matulona insolente que se recusou a obedecer à professora e que foi filmada por um outro membro do grupo de selvagens ululantes que a rodeava transformou-se, ao longo da semana, em pretexto para a actividade portuguesa favorita, que é a especulação histórica - em versão masoquista, porque não conhecemos outra. A viagem de circum-navegação à identidade lusitana começou pelo omnipresente pormenor burocrático: "o processo de averiguações" que a sempre averiguadora DREN (Direcção Regional de Educação do Norte) "instaurou". Dois dias depois, ficámos a saber que também a PSP estava a "investigar" a ocorrência. À hora que escrevo, as "averiguações" e "investigações" estão em curso - mas, depois de ver o vídeo, não entendo o que pode sobrar para averiguar. O vídeo é mais explícito do que um filme pornográfico. Aliás, o vídeo em si parece-me um objecto rigorosamente pornográfico; útil, certamente, como aquilo que se convencionou chamar pornografia também muitas vezes é - mas nem por isso menos pornográfico. Entretanto, um comunicado da Confap (Confederação Nacional das Associações de Pais) responsabilizava o "desaparecimento da família tradicional" e da "escola tradicional" pela "crise de autoridade" e pela "crise da educação". Confesso que não sei o que é a "família tradicional". Deduzo que seria qualquer coisa existente há cerca de trinta anos, no tempo em que eu era adolescente, porque nessa época ninguém chorava a morte desse, para mim enigmático, tipo de família. O modelo urbano de família dessa época consistia num pai ausente (até porque, normalmente, passara anos na guerra colonial), numa mãe que trabalhava fora e dentro de casa e - nas famílias mais abastadas - numa ou várias "criadas" que tratavam da casa e dos meninos. À hora do jantar via-se o telejornal e não era suposto que os filhos falassem - nas famílias "bem", as crianças comiam antes dos adultos, na cozinha, com as criadas. A "escola tradicional", suponho que era aquela, ainda em voga na minha infância, onde se punham orelhas de burro aos que não sabiam a matéria e coroas de rei aos que sabiam tudo. E onde os prevaricadores eram domados a reguadas. Estes métodos, que agora parecem inspirar saudades aos mais desnorteados, não eram, de facto, produtivos: recordo que os fustigados com apêndices de asno e pancada na escola primária tinham tendência a formar bandos de delinquentes no liceu, e chumbavam anos a fio. E, já nessa altura, a delinquência não emergia só das chamadas "famílias desfavorecidas" - até porque as ditas famílias tiravam os filhos da escola depois da quarta classe ou, na melhor das hipóteses, do ciclo preparatório.
O que não havia nessa época, porque não havia dinheiro para isso, era a cultura do consumismo desenfreado que há hoje. Para começar, não havia telemóveis. Se acontecesse alguma coisa grave a um familiar enquanto os alunos estavam nas aulas, contactava-se a escola. Não percebo porque é que esta regra não se aplica hoje: nas aulas, os telemóveis deviam ser, pura e simplesmente, proibidos. Porque mesmo na posição de "silêncio" os alunos podem passar toda a aula a enviar sms. É até natural que o façam: são adolescentes, têm as hormonas aos saltos. Aquilo que, na idade adulta, e com sorte, integramos como "regras éticas" básicas, começa, na infância e na adolescência, pela integração de um factor emocional muito eficaz que se chama "medo das consequências". Crescer é aprender a lidar com a frustração e com os limites. Ansiosos por dar aos filhos tudo o que não tiveram, os pais esquecem estes princípios básicos. Querem que os filhos sejam felizes e os amem, e pensam que é dando-lhes tudo que o conseguem. Mas o amor quer distância, respeito e medo. Medo das consequências: se tratarmos mal um ser amado, é muito possível que ele se canse de nós. Como, aliás, se o tratarmos demasiado bem, apagando todos os nossos desejos para cumprir os dele. Aquilo que nos impede de roubar, por exemplo (quem não roubou um chocolate ou um livro na adolescência?) é, antes de mais, o medo das consequências. Os pais não querem que os filhos tenham medo deles: por isso, as crianças crescem a bater o pé, a interromper os adultos, a sentirem-se donos e senhores dos pais. Não é uma questão de "família tradicional" ou "família moderna" - é apenas o resultado do endeusamento civilizacional (por razões demográficas e pela melhoria da qualidade de vida) das crianças - que, até ao século XX, eram apenas considerados como adultos em miniatura, irrelevantes porque de baixa rentabilidade.
A escola das reguadas - onde os tais pais tradicionais nunca iam... - foi substítuida por uma escola que, em vez de ensinar, brinca às famílias. Os professores foram cultural e institucionalmente desautorizados: para expulsarem um aluno da turma, é preciso um rol de burocracias e justificações, que até se podem virar contra o próprio professor. É simples: sem as quatro letras da palavrinha "medo", não há educação. Podem chamar-lhe respeito, se quiserem. Desde que tenha consequências."


in Única, Expresso nº1848, 29 de Março de 2008

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